1 de fevereiro de 2007

O Regicídio - III



Ha oito dias, reproduzindo as affirmações feitas pêlo chefe do govêrno português a um grande diário parisiense, apposemos-lhes esta simples annotação “as ratificações ou as rectificações fazê-las-á a história.”
Embora resultantes de uma demorada reflexão, e apoiadas em factos de summa gravidade que eram do domínio público, mas a que a imprensa estava inhibida de referir-se, nunca imaginamos que a essas palavras tão cêdo respondesse uma tragédia tremenda, que abriu na história portuguêsa uma página de horrôr, cuja sequência mal se póde ainda prevêr.

Esse acontecimento atroz, que brutalmente fechou o reinado do sr. D. Carlos I e do mêsmo passo arrebatou á successão no throno português o príncipe herdeiro D. Luiz Filippe, reboou como ingente clamôr por tôdos os recantos do orbe civilizado aonde o telégrapho podia levar a tétrica noticia; e é bem fácil de comprehendêr quão profunda e dolorosa foi a emoção causada por similhante attentado, que brada contra os mais elevados sentimentos da piedade e da fraternidade humana. Mas, se nos é grato pensar e acreditar que, nêsse momento verdadeiramente trágico, taes sentimentos sobrelevaram tôdas as paixões, não podemos occultar que o horrível acontecimento não surprehendeu ninguém que viesse assistindo, com aquêlle vago terrôr a que ainda ha oito dias alludiamos nêste logar, ao encastellamento de desvarios, á accumulação de violências e oppressões, á subversão de tôdos os direitos cívicos, que num crescendo vertiginôso compellia o pôvo português ao desespêro e á revolta.

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Perante um crime de morte, quer êlle se produza na grande massa anónyma do pôvo humilde e nas lôbregas alfurjas da miséria e do vício, quer êlle attinja, como agora, régias personagens e deflagre atroadoramente em plena côrte, á justiça humana occorre naturalmente investigar das origens do crime, das causas que movêram o assassino e das responsabilidades que porventura possam cabêr a instigadôres ou cúmplices.

No caso presente, quaesquer que sejam os elementos que a justiça possa descobrir pâra apurar as determinantes immediatas do crime, ou personalizar cumplicidade, se ella existisse, ha uma somma colossal de circumstâncias que devem integrar-se na génese dêste attentado cujas tremendas responsabilidades não descêram tôdas á valla onde vão decompõr-se os cadáveres dos dois regicidas.

Os factos são de nossos dias, e de tal modo clamorosos, que a ninguém é lícito desconhecê-los nem velar-lhes a significação e o alcance.

Num país, constitucionalmente liberal e em que o rei é irresponsável, um presidente do consêlho arrasta o soberano á discussão parlamentar e á crítica acerba da imprensa, divulgando cartas do mêsmo soberano de índole accentuadamente política.
Após essa imprudência e quando outros incidentes haviam. suscitado no parlamento os mais vivos debates, o govêrno com o concurso do rei dissolve as côrtes, colloca-se em dictadura e estabelece um conflicto irreductível com os partidos monárchicos.
Entra-se em plena phase de despotismo. A imprensa é amordaçada; supprime-se o direito de reunião; criam-se jurisdicções especiaes, attentatórias da liberdade; implanta-se, em summa, sem a intervenção do parlamento, um regime draconiano.
Entretanto, o rei, saindo daquella discreção que deve sêr o apanágio de um soberano, concede uma entrevista a um redactôr do Temps e, nessa entrevista, faz revelações e commentários de órdem política, que os partidos monárchicos tomam como injuriosos. D'aí a incompatibilidade, ostensivamente declarada, dos mêsmos partidos com a corôa. A despeito da lei coercitiva que pésa sôbre a imprensa, e afrontando as penalidades que essa lei commina com uma elasticidade assombrosa, rompem os ataques directos á corôa, saltando os próprios monârchicos por cima dos mais fundamentaes interêsses da monarchia, e fomentando as antipathias contra o chefe do Estado, a quem pediam a responsabilidade de tôda a obra nefasta da dictadura.

Foi nesta atmosphera de despertos, de ódios e de rancôres que se acalentou o espírito revolucionário. Pêla própria confissão do dictadôr, descobriram-se machinações infernaes, aprehendendo-se explosivos e armas, prendendo-se agentes revolucionários. Foi nessa atmosphera oppressiva que se gerou a sedição abortada de 28 de janeiro último, em que, segundo os jornaes do govêrno, estavam envolvidos republicanos e monárchicos e que tinha por objectivo derrubar violentamente o dictadôr. Foi como medida extrema de repressão a essas tentativas revolucionárias, que no próprio dia 1 de fevereiro a fôlha official publicava um decreto pêlo qual, em simples anályse, o govérno ficava investido de discrecionários podêres pâra a applicação das máximas penalidades.

E é sôbre esta medonha série de desconcertos governativos, no próprio dia em que a Liberdade recebia o mais fundo golpe da ditadura, que regressa a Lisbôa o chefe do Estado com sua augusta espôsa e seu filho o principe herdeiro, como se alguem ignorasse que havia uma onda revolucionária a convulsionar uma parte - grande ou pequena, pouco importa - da população de Lisbôa, e que em similhantes circumstâncias era evidentemente perigôso expôr ás iras de algum fanático aquêlle sôbre quem funestamente se tinham feito recair as mais graves responsabilidades sociaes!
Por Deus! Se alguém ha que possa absolvêr, não do propósito criminoso que não articulamos, mas de tão descompassada leviandade aquêlles que tinham o indeclinavel devêr de velar pêla vida do rei! Se alguem ha que a nós mêsmos nos possa condemnar por dizermos nêste momento desassombradamente a verdade que tôdos intimamente reconhecem, mas que muitos têm a hypocrisia inútil de occultar, êsse alguém tem uma falsa concepção da Justiça e desconhece que a missão do jornalista honrado é a de referir e apreciar os factos com absoluta liberdade de consciência, e não a de os mascarar no propósito de lisonjear quem quer que seja.

Como português, amando a pátria como os que mais acrisoladamente a amam, o nosso mais ardente desejo é que da cruciante amargura que alanceou o nôvo rei D. Manoel II, êste juvenil soberano possa colhêr uma inolvidável lição.

O actual rei da Itália, Victor Manoel III, succedendo ao desventurado rei Humberto, também barbaramente assassinado em 1900, é um rei modelar, alma nobilíssima, espírito culto e eminentemente liberal, que tem conseguido fazêr-se amar de tôdos os seus súbditos, acalmar as paixões partidárias e vêr collaborar na obra civilisadôra do seu reinado os próprios republicanos que, sem abdicarem dos seus princípios, reconhecem os primôres de carácter do chefe do Estado, e lhe votam o seu respeito. Sôb os auspícios dêsse rei magnânimo, affável, laboriôso, honestíssimo e esclarecido, a Itália tem progredido nos últimos annos em tôdos os ramos da actividade nacional. As sciências têm naquêlle país os mais illustres cultôres, que o rei estima e premeia; a agricultura tem no rei o mais devotado protectôr; as festas do trabalho devem-lhe o mais valiôso auxílio; a instrucção pública merece-lhe o maior interêsse.

Se as nossas palavras podessem sêr attendidas pêlo príncipe que em tão vêrdes annos a fatalidade elevou ao throno de Portugal, dir-lhe-iamos:
Senhôr! Quiz o destino que, além dos laços de familia, um outro laço de afinidade, bem triste, vos ligasse ao rei Victor Manoel III. Como êlle ascendeis ao throno, em circumstâncias profundamente trágicas. Pois bem: Completae a obra do destino. Igualae-o, se podeis, na benignidade, na sabedoria, na prudência, e no amôr á vossa pátria!

Júlio Gama.
Gazeta das Aldeias, Fevereiro de 1908.

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