8 de julho de 2008

Doença do democratismo


Tenho lido muitas vezes, noutros blogues, comentários de pessoas que estranham, quase parecendo escandalizadas, as tomadas de posição de comunistas e outras esquerdas extremistas que ora apoiam governos como os da Birmânia e do Sudão, ora se opõem a movimentos dissidentes do regime chinês, criticando, por exemplo as rebeliões dos monges budistas para as quais inventam elaboradas teorias conspirativas onde a CIA é sempre sombrio actor presente, ou ainda quando os comunistas portugueses recebem amigavelmente delegações dos verdugos das FARC e da ditadura castrista, etc., etc. Compreendo essa estranheza e esse espanto: para quem não conhece ou não acredita na História do Século XX, nem ouviu falar com clareza do verdadeiro rosto do estalinismo, os discursos igualitaristas dessas esquerdas soam como as palavras de Jesus deverão ter soado nos ouvidos e nos corações dos Seus contemporâneos (os que, evidentemente, O escutaram ou Dele ouviram falar). Este fenómeno ocorre com mais frequência no norte do país onde a influência cultural do cristianismo se manifesta com mais força. Igualdade entre os seres humanos, compaixão, partilha, não são termos estranhos aos cristãos e com facilidade se confundem com ideologias políticas pretensamente igualitárias. Conheci excelentes pessoas que assim pensavam. Cultas e com profissões que as situavam no sector médio-alto da sociedade, empregaram uma boa parte das suas vidas ajudando os mais necessitados e, por causa disso, algumas delas morreram sem dinheiro para pagar um caixão digno. No fundo, o seu trabalho intelectual no campo da política, para além da leitura dos textos dos ideólogos marxistas, não passou de uma transferência dos valores cristãos - que apenas oferecem uma hipotética recompensa para depois da morte o que é, para muitos, o equivalente a dizer que não oferecem recompensa alguma, mas tão só uma vida de sacrifícios e frustrações - para as mais terrenas e racionalmente aceitáveis democracias populares e ditaduras do proletariado. Há uns anos, dizia-me uma amiga que os comunistas do norte são-no por opção, enquanto que os do sul o são por herança. Acrescente-se que também ela era, à época, e não sei se ainda é, comunista (do norte, claro).
Ora, não havendo desculpas hoje em dia, em plena idade adulta da era da informação, para o desconhecimento da história daquele que se costuma situar entre os dois primeiros totalitarismos (considerado o fundamentalismo muçulmano como o terceiro), penso que ainda não é tarde demais para se reflectir sobre se deverá a democracia permitir a existência no seu seio de ideologias que lhe são contrárias e que tendem a pôr-lhe termo. Considerada a sociedade no seu todo como um organismo, poderemos transpôr esta ideia para um corpo vivo, o humano, por exemplo, e pensar nas consequências da existência no seu interior de micróbios malignos. O resultado da sua acção depende da força do sistema imunitário. Ora, a sociedade precisa igualmente de anticorpos sob pena de correr, ela mesma, o risco de desaparecer. Foi pensando neste aspecto que certamente se redigiu o nº 4 do Artº 46º da Constituição da república Portuguesa e não por um qualquer leviano sentimento de vingança em relação ao regime político que precedeu Abril de 1974: "Não são consentidas associações armadas nem de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, nem organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista." Esta proibição de organizações fascistas e nazis (subentendidas na referência ao racismo e ao militarismo) é normal num país que conheceu os efeitos nocivos do exercício do poder por partidários deste tipo de ideologias, aspecto que se estende a toda a Europa Ocidental e Central. Mas trata-se apenas de uma questão conjuntural: na Europa de Leste estão muito mais vivos os efeitos do poder estalinista, daí que nestes países se coloque com a mesma urgência a mesmíssima questão, apenas com a diferença de ser dirigida, não ao fascismo, mas ao comunismo. (Exemplos da República Checa e da Lituânia).
O desaparecimento de partidos políticos que perfilham ideias estalinistas, maoístas e trotsquistas, poderia abrir espaço à criação de movimentos mais modernos e com ideias arejadas, capazes de contrapôr a actual hegemonia cinzenta dos cada vez mais obscuros peésses e peessedês. Por outro lado, com o afastamento forçado dos movimentos ditatoriais, poderíamos paradoxalmente estar perante um enfraquecimento da democracia que pressupõe o livre debate de ideias e até, talvez, a criar um novo regime totalitarista. Assim, o efeito da acção seria contrário aos seus propósitos. Uma opção que parece boa e simples, constituiria apenas no alargamento no artigo constitucional citado às organizações comunistas e outras fundamentalistas. Como anotaram à Constituição, Gomes Canotilho e Vital Moreira, "Podem defender-se ideias fascistas; o que não se pode é fundar organizações fascistas", passaria a interpretar-se "Podem defender-se ideias totalitaristas; o que não se pode é fundar organizações totalitaristas." Duvido é que o segundo fosse gostar...



Outras ligações relevantes:
CNE - Ideologia política
Área Nacional -O art. 46º da CRP

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